segunda-feira, 24 de agosto de 2020

INCOMUNICÁVEL

 

 

 

NCOMUNICIÁVEL



 

INCOMUNICÁVEL

 

 

Os seres não se tocam

na contramão do dia.

Bólides de medo e distância,

os seres se proíbem

em data e pleito

                           que se adia.

 

Irreconhecidos, permanecem

à porta das lembranças

como se um velho,

ao crepúsculo, recolhesse

a mão de uma criança.

 

Os seres não se tocam

Na palavra geografia,

os corpos não são vias,

não são portos ou caminhos.

São ermos e selvas

                         E desertos.

 

O corpo é uma praia

que outro corpo invoca

com seu aceno de onda

tremendo sobre distância.

 

Os seres não se tocam

na dor de ser presente,

ofertam-se em casca

e negam-se em semente.

 

São margens e consentem

intactos territórios.

Por isso, é tudo abismo

o que a mão prolonga,

é tudo abismo

o que o beijo alcança.

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 31 de julho de 2020

ESTIO


 

I – Compáscuo

 

O cerrado exalta sua teimosia humana.

Lá estão os pastos ressequidos,

 gáudio magro para os estivais rebanhos.

Clamam no pastoreio a exaustão das ervas.

Caminham para o vento eriçando os colmos exilados

na estação mais dura.

Malgrado o azul sem augúrio, de céu nublado e chuva,

ainda vou ceifando flores

no compáscuo de luz solar e tardios rebanhos.

Com humana teimosia a terra exalta a nascitura brisa,

flash de suave secura, unhas de sede.

E como quem dá à luz um plenilúnio

as minhas mãos desenham o que transpira,

cujo destino é ser a trilha de bordada sombra,

 o verde suspirar de uma vereda.

 

 

II – Terra

 

Sempre esteve aí, sob a marcha inexorável.

Altas florestas, rios, montes, e mesmo o insatisfeito mar

se escora em sua alma côncava.

Impassível, balouça a rede do mundo

desfilando nos turvos céus o fósforo inalcançável das estrelas.

Aferro-me amoroso à epiderme

de seus vulcões acesos,

no abismo escuro espero animosa flor de erupções.

Sou apenas o pequeno e nascituro desafio da carne.

Meu ajuntado de músculos e ossos

carregam em seu farnel de sonhos

cidades, muralhas e destroços.

Deixei a exaltada arquitetura das multidões.

Ínfima rebeldia, caminho por vales, cerros e desertos.

Vem, acolhe o magro espólio, o desamado comodato:

desta alma débil, extremo canto e dor impura.

No dealbar da estrada havia sendas. Sem cavalgar, voltei.

Abandonado, nas estações candentes,

contido em barro, esperei sozinho.

 

 

III - Revoadas

 

Logo será a manhã das revoadas.

Recolho sangrando de crepúsculo aquelas memoriais jornadas.

Na altura, em sobrevoo, deixam adeuses às várzeas

em celebração de pátria.

Chegar e partir é dor - paroxismo extremo.

Nascer e morrer é nossa conta de fel e de suor.

Viver inclui cansaço e sede de alcançar

a falta que um porto apenas inaugura.

 

Logo será a manhã das revoadas.

Embarcaremos nas velas embebidas de vento e espuma.

Ai, lágrimas escorrendo nas praias!

Ai, desfiado pranto de sal pelos trapiches

desgarrados de todo chão e todo azul.

Em baixo a terra, o berço amado - torrão,

aconchego e infância de lidimas estações.

 

Logo será a manhã das revoadas.

Tudo que resta para trás é desalento.

Para lá aportam os amores verdes, sem outonos.

Por lá padecem as infâncias que não vingam,

corpos curvados, mão vazias e canções

que, magoadas, apenas balbuciam

o pizzicato de todo desencanto.

 

 

 

Pacha-Mama, 25 de julho de 2020

 

 

 

 

 

 

 

 


quinta-feira, 23 de julho de 2020

DIÁRIO TARDIO I - Pequena Peste



DIÁRIO TARDIO I


PEQUENA PESTE
                         

Sobre peste, deparei com uma na infância, isto é, quando era menino, porque infância nunca conheci. Fui homem desde os seis anos, ou antes, porque sendo o mais velho de uma récua de pai ausente, era chamado por todos de “o homem da casa”. Tinha que ser forte, adulto, servir de exemplo. Perdão, paciente leitor, isto é assunto aborrecido, piegas, talvez melhor tratado mais tarde. Com licença. Daquela época, que não me parece longe, me recordo de uma doença que apareceu pelos ermos onde vivíamos. As pessoas caíam de febre, com toda espécie de mal estar, andadeiras e vômitos, iam enfraquecendo, se finando e, opilados, em pouco se acabavam. Tinha eu lá meus sete ou oito anos, quando caí em prostração daquela enfermidade. Acomodado em um catre de braços de buriti. Tinha também um primo da minha idade na cama ao lado. Via minha mãe indo de lá para cá, feito lançadeira, disfarçando para que eu não soubesse o que acontecia. Perguntava pelo primo que ontem gemia na cama próxima, e para me acalmar dizia que estava brincando lá fora. Porém a mim, não deixava brincar. Também, mesmo que deixasse, meu corpo desmilinguido não encontrava forças para atirar de bodoque, trepar nas mangueiras, pescar no riacho ou correr nos jogos pueris daquele tempo. Me intrigava o gemido arrastado, a respiração em roc-roc-roc do serrote traçando madeiras e abrindo tábuas. Aquilo era dia e noite, porque, como soube depois, as tábuas eram para a construção de caixões. Nas vizinhanças, muitos pereciam e demandavam um enterro cristão. Minha mãe, sabendo dos perigos que aquela doença trazia e com o filho mais velho prostrado, a tempo de ser engolido pela peste, procurava desesperada algum socorro. Já utilizara todas as mezinhas, simpatias e benzeduras da farmácia e da sabença caseira. Soubera, que mesmo na família, aquela doença vinha ceifando muita gente. Não se esquecia de uma mulher que perdera, em uma semana, sete filhos e o marido. Ali mesmo naquela casa, há pouco, morrera o menino que se deitava ao meu lado. Apenas amostras. Poucas pessoas se levantavam, das acometidas pela doença. Mesmo sem muitas letras, sabendo apenas desenhar o nome e garatujar algumas palavras, a mãe tomou uma decisão heroica. Pegou uma folha de caderno, anotou ali a cara e o jeito de caminhar da doença, hora por hora do dia, também das noites. As feições do doente e as mudanças que iam ocorrendo em seu semblante e corpinho impúbere. Vendeu a metade de seu patrimônio – uma das duas únicas novilhas que ganhara de um irmão -, ajustou um positivo e o enviou à cidade mais próxima, a cavalo, levando seu relato para um médico.  Falava do doente e a malsinada febre. O positivo levou uns dois dias para ir à cidade e voltar com as recomendações do esculápio e alguns remédios. A mãe seguiu, ao pé-da-letra, as prescrições anotadas e explicadas pelo facultativo. Cuidar da alimentação do enfermo. Só coisa leve, papinhas de arroz. Nada de gorduras, nada de comidas cruas, nem mesmo frutas. Água, só fervida. Unção de álcool três vezes ao dia, orientando também como atender suas necessidades, evitando contato com lama, sujeiras, excrementos e qualquer outra imundície, e outros doentes. O pequeno enfermo chorava, sentia-se prisioneiro, torturado por aquela disciplina cruel. O tempo passou célere, pois é assim que o tempo corre na infância da gente. Devagarinho o menino foi tomando ânimo, se movendo no catre, começou a sentar-se e, em poucos dias, já ficava de pé e caminhava, mesmo cambaleando, meio cai-água, ou   apoiado pela mãe. Assim, escapei daquela enfermidade e até hoje não atento para o que seria. Diziam que era, tifo, febre tifoide, maligna, e outras febres. O certo é que naquelas distâncias, nas barrancas do rio, sem médico e assistência de saúde, ninguém ficou sabendo que mal era aquele. Sabiam apenas que matava pessoas e cada vez mais precisavam de novas covas. O serrote traçador teve que fatiar muitas tábuas de cedro, arrastando dia e noite seu pesado sofrimento. A doença deixou muitas lembranças, quase todas más. Cada um tinha perdido um filho, mãe ou irmão. Não era fácil esquecer porque havia o luto costumeiro e, não raro, nos cemitérios improvisados, à beira das estradas, pedaços de mortalhas se espalhavam, arrancados das tumbas por tatus heréticos. Escapei. A praga me esqueceu. Daqueles dias, em névoa, recordo ainda o lufa-lufa da mãe, o ruflo de seu vestido entrando e saindo do quarto, as reprimendas impositivas e sua mão me levantando encaminhando para o mundo, por onde ainda hoje caminho. E às vezes, quando fraquejo e resvalo sobre as carnes e os próprios ossos, no escuro, ainda é a sua mão que, exausto, espero e procuro.


(De Diário Tardio)
Maio, Goiânia, ano COVIDE de 2020




ELEGIA EM NOME DE DURVAL NUNES



ELEGIA EM NOME DE DURVAL NUNES
                                            Aidenor Aires*


Bateu à minha porta
o rumor de tua ausência improvisada.
Ainda há pouco, conversávamos sobre os apriscos,
o balir das cabras no apojo dos borregos.
Celebravas o zumbido doce das colmeias
dessedentando-se nas flores da caatinga,
nas águas do riacho.

Não concluímos aquela conversa sobre cantiga da terra,
o gemer das florestas, o lacrimejar dos ramos,
o tênue orvalho nos racimos que a pesarosa
mão do homem dilacera.

Ainda há pouco, me confidenciavas o mugido da rês
lambando os barreiros das encostas.
Que louvação e sofrimento gemiam nos aboios,
nas ladainhas de crença, fé e sonho!
Neles se compraziam os perdidos do sal e da ternura.
A bênção que proclama mãe Calima, e todas as mães
de filhos partidos na infância, que jamais retornarão.

Olhávamos o “Rio Preto, de Águas Cristalinas”,
e desenhávamos no espelho rútilo
 utopias de canto e poesia.
Olhávamos a Barra do Rio Grande escalando rochas, peraus
e correntezas
para chegar, arfando nos vapores, ao pétreo leito das barreiras,
sem a dormências das rasuras assoreadas.
Depois o rio se desmanchava em braços, em nervos, em veias
sondando os vales, a doce babugem no cio
 dos gerais.

Ainda buscávamos palavras para falar de exilados pés-duros
remoendo na secura as flores roxas da jitirana.
Ainda conversávamos, à mesa, como irmãos reencontrados,
sobre os poemas que fizemos.
Outros que cantaremos.
E aqueles que os poetas do futuro escreverão.

Falávamos da gente, da pele morena e dos rostos rosados
das caboclas púberes.
Eram tantos os seres, as gentes, as histórias,
salvos da vertigem do perecimento.
 E com voz rouca do rocio tardo,
sustentávamos o canto,
já alumbrando nossos olhos a luz da madrugada.

Sem aviso, enfim, foi se calando a tua voz.
Mas, no meu silêncio não falei sozinho.
Mesmo com meus braços alongados
par o chão das despedidas,
continuei ouvindo a tua voz.
 Era voz que ensinava o linguajar da passarada,
as cantigas de todo bicho que se move ainda
 entre arados e erosões.
 de seresteiros, de poetas e meninos.
 Eram vozes que o silêncio da morte não calava.

Apenas pedi ao vento cerrar a litania.
Interromper o despetalar das solares tabebuias.
Pedi às águas pausar a marcha dos cardumes e
o alarido das corredeiras.
Pedi aos seres da terra, das águas e do ar
para escutar comigo as vozes órfãs que perderam seu cantor.

E como ele retomasse a palavra e cantasse,
eu me calei.
Calou o rio. Calou o vento na floresta prosternada.
 E o poeta empolgou a voz:  Continuem o canto!
Que quem canta na dor e no sorriso, tantas vozes,
ainda que doendo, não cantará sozinho.



*Aidenor Aires é membro da Academia Barreirense de Letras,
da Academia Goiana de Letras e presidente da Academia Goianiense de Letras.









domingo, 27 de janeiro de 2019

CANÇÃO DA CHUVA CONSTANTE.


  

Chuva de ontens e imemoriais infâncias,
de auroras ruivas e  mundos  pubescentes.
Varando raízes de expectação, frementes,
sem portos, amuradas ou distâncias.
Toda a noite e o dia, incansavelmente,
drenou dos céus à exasperada secura,
mananciais contidos de mel e de fartura,
derramando-se em gozo  fecundo de semente.
Vem a chuva! Serenamente deu ao campo
As esperanças dos bichos, as revoadas...
E foi tanto o milagre de sonhar, e santo,
que as espigas novas reclinam decepadas.
E leve, levíssima, a maternal chuvinha,
acariciou, como sabe amaciar a pluma,
a áspera terra, a malicia, a urze mais daninha
coberta de orvalho, adocicada névoa e bruma.
Caiu em homilia branda, chuva e glória
Intimando os seres vacilantes às retomadas
do marchar da vida em sinuosas caravanas.
Arrebanhando brotos e espigas dispersadas
nas terras largas, ermos cerros e nas savanas.
Chuva que se encorpa na serra sem nome,
Sem dono, sem nenhuma reserva de mercado.
A propicia chuva, notívaga  e insone
sabe a preclaro mel e leite derramado.
Sem prever avenças, sem tenças ou tributos,
quer ser a chuva do dia, da estação , da flor
Rasgada de seus ínvios seios e ocultos.
Na parição da terra, tão ferida. Suma dor!
Choverá muito sobre o crente e o ímpio,
Como se fosse de Deus desértico maná
Molhará as barbas do potentado olímpio
E dos mais tristes e mais fracos molhará.
Não leva, à mingua de ser sempre generosa,
A culpa de negar-se o pão ao irmão,
Nem de sede secar-se carne e  a rosa rosa
Dando ao garrote, o digno de perdão.

                                               Terras  Utopia  , 13/11/2016

A CARA DO NATAL




                                                    Aidenor Aires

Nestes dias, procuro fechar os ouvidos e os olhos aos risos e brilhos natalinos. Com o tempo, fui abandonando as crenças e a mitologia. Para mim, os deuses há muito se acabaram. Restam lembranças e alguns atavismos em cultos interesseiros e vazios. Para mim, só o que pensa sente, sofre e morre tem influência na vida e no mundo. Fui aprendendo que não há nada na terra que tenha sido construído por alguma inteligência ou determinação exterior ao mundo. Lição do poeta Lucrécio e de pensadores modernos que trilham os caminhos do humanismo. Natal, dizia Carmo Bernardes, é festa de cidade.  Realmente, concluo, que nos meus tempos de menino beradeiro dos barrancos do Rio Branco, oeste da Bahia, pouco me lembro desta festa, hoje tão mirabolante. Havia, é certo, lapinhas, talvez novena, ou outros ritos sertanejos, cópias do relambório esotérico do “latinorum” romano. Para o povo da roça, era época do milho verde, das pamonhas, do feijão de corda, dos frangos gordos e belos leitões. Mais do que devoção, salvo para as pessoas religiosas, era tempo de fartura. Lembrava mais as festas pagãs do solstício de verão, que a mídia e A dialética papal não conseguiram exterminar. Esse paganismo foi substituído por novas crenças, da globalização, das mídias ruidosas e das divindades mercadológicas. Vai cessando a invocação da manjedoura construída no imaginário cristão com seus animaizinhos, um berço de palha, reis e seres improváveis. Nos festejos da roça meninos não participavam. Não havia presentes. Quando muito, brinquedos feitos à mão. Lembro-me de bodoques, carrinhos de madeira, piões, fincas, berra bois, bola de leite de mangaba, recheada com ar de bexiga de porco. Nada de roupa nova, calçados e outros aguinaldos, hoje derramados sobre os desejos da meninada e exibicionismo dos pais. “O Zezé quis um tablet” Rosinha um celular, Maria uma boneca com pipiu ou perereca. É bom para as novas políticas de gênero. Já estão quase na idade de se decidirem pela opção sexual a ser gravada no registro de nascimento, que ainda está com um espaço “indefinido”.  A infância daqueles meninos não passava atoa. Poucos tinham acesso à escola e passavam os dias em trabalhos de ajuda aos pais. Dormiam em catres, um ao lado do outro. Não tinham privada patente, comiam o que a terra dava. Nunca recebiam salários e tinham pouco tempo para as atividades lúdica, depois que cumprissem as obrigações familiares. Talvez varrer o quintal, dar água ás criações da casa, capinar um eito de arroz. Depois de um prato de feijão pagão, um pedaço de rapadura que insuflava nas carnes e nos ossinhos tenros toda a sustança da vida. Verdadeiro trabalho escravo. Não era censurável porque assim viveram seus pais e nunca padeceram fome, nem falta de liberdade, nem miséria moral. Apreciam, isto sim, lições de amor à terra, à vida e a solidariedade. Natal, para mim, pouco importa. Dele recolho apenas algum sorriso, um abraço, um beijo da pobre gente esquecida, por um momento, de suas angústias, purgando-as no vinho, na cerveja, nos leitões, perus e rabanadas opíparas. Não precisam olhar lá fora. Afinal, aqui há tanta beleza, tanta música. Desfrutam com quem não tem futuro, porque imaginar, sonhar, ter fé não é construir. Falta nesses obreiros sentimentos humanos. Operam por consentimentos dos deuses que não estão na terra. Estão distantes e altos ignorando as alegrias ou misérias da terra. O Natal, para esta gente é um carnaval de máscaras místicas, caras piedosas e pio gestual. Recordam seus mortos e os guardam em algum paraíso, onde estão congelados, não padecem fome nem tristeza. Para mim, no correr da vida, fui descrendo desse imaginário, mitos fantasias. Respeito e honro quem assim crê. Afinal, tudo cabe dentro do homem, inclusive a crença em milagres. Retorno àquele tempo luminoso da infância sem censuras, aos passarinhos, às farturas da estação, à minha gente que nasceu, sentiu e sofreu, quase distante do comércio da fé e da tirania dos deuses.



Sítio Pachamama, Solstício de Verão de 2017